sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Violência contra mulheres aumenta risco de HIV

"Minha mãe me batia, me trancava e depois começou a me acorrentar à mesa", conta Elizabeth. Teresa estava grávida de sete meses quando seu marido a agarrou pelos cabelos, a jogou no chão e começou a pisar nela. Estes são testemunhos de mulheres vivendo com HIV/aids publicados em um informe divulgado ontem em Buenos Aires, que revela as diferentes formas de violência que sofrem a maioria destas mulheres ao longo de sua história.

A pesquisa "Duas faces de uma mesma realidade. Violência contra as mulheres e o HIV/aids em Argentina, Brasil, Chile e Uruguai" afirma que 78% das entrevistadas nos quatro países sofreram algum tipo de violência em sua vida. Quando as mulheres contraíram o HVI, muitas já traziam uma longa história de abuso e violência de gênero que as deixou mais vulneráveis, diz o estudo.

Foram entrevistadas 399 mulheres com o vírus nesses países, e 70% disseram ter sofrido violência psicológica, a mais citada, que se manifesta em humilhações, insultos, piadas e desprezo. Além disso, 55,6% sofreram violência física por parte de pais, padrastos, cuidadores e cônjuges, como empurrões, tapas, socos com os punhos e objetos, surras, chutes, queimaduras e enforcamento.

As entrevistas foram feitas em pares. Na Argentina, participaram dez mulheres da Rede Bonarense de Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV/aids. Uma delas, Caty Castillo, contou à IPS que as mulheres não consideravam os fatos de violência sofridos como algo mau. "Inclusive isso aconteceu conosco, entrevistadoras. Quando fizemos o questionário primeiro entre nós mesmas, nos demos conta de que muitas havíamos passado por situações de violência e abuso e não havíamos considerado isso algo ruim", admitiu.

As mulheres foram citadas apenas pelo primeiro nome. Assim, Griselda, do Uruguai, conta: "Meu pai gostava de bater muito em mim. Não sei o motivo. Não eram palmadas ou uma surra. Me amordaçava, colocava esponja na minha boca". Quase 60% das entrevistadas viram a mãe sofrer agressões de seus companheiros, e depois elas sofreram ataques de seus companheiros. "Colocou uma faca no meu pescoço, cortou meus punhos, me batia por ciúmes", contou Florencia, também do Uruguai.

O estudo, compilado pela médica Mabel Bianco e pela socióloga Andrea Mariño, da Argentina, diz que "a família, suposto resguardo do mundo afetivo, não parece ser o meio mais seguro para muitas destas mulheres". As especialistas pertencem à Fundação para Estudo e Pesquisa da Mulher da Argentina, que trabalhou nas entrevistas junto com a organização brasileira Gestos, a chilena Fundação Educação Popular em Saúde e a uruguaia Mulheres e Saúde.

Andrea explicou à IPS que "as mulheres que sofreram violência ao longo de suas vidas são mais vulneráveis à infecção porque, em geral, perdem autonomia, autoestima e também capacidade de negociar o uso do preservativo". Por exemplo, as entrevistadas confessam que foram vítimas de violência sexual em alta porcentagem (36,3%), quase sempre cometidas por seus companheiros, e também abuso sexual em grandes proporções (32,8%) na infância e adolescência.

"Há uma naturalização da violência na vida de muitas destas mulheres desde a infância. Não têm registro de que isso não é normal, que é um crime", ressaltou Andrea. Sobre violência sexual há diversos testemunhos. "Eu não queria quando ele estava drogado", conta Sandra, do Uruguai. "Se queria fazer, me obrigava, me pegava, e eu tinha de fazer porque era o pai de meus filhos", contou. Muitas das mulheres entrevistadas também recordaram episódios de abuso sexual na infância, e não apenas toques. "Ele (seu pai) quando eu tinha cinco anos me violentou até os sete, oito anos, e foi uma experiência muito ruim", assegurou a chilena Iris.

A entrevistadora Castillo, concordou que a maioria, das que admitiram ter sofrido abuso, o considerou algo "normal" porque os responsáveis eram familiares próximos. Apesar da evidente ligação entre violência de gênero e HIV, o estudo alerta para uma "preocupante limitação de dados oficiais" nos quatro países, o que impede "dimensionar a magnitude do problema". A pesquisa também traça um panorama sobre as características da epidemia na sub-região e destaca alguns avanços, como universalização dos tratamentos para combater o vírus e as leis contra a violência.

"Não há programas governamentais nacionais que articulem estratégias para mitigar as duas pandemias", diz o informe, com exceção do Brasil, onde existe um plano nesse sentido, mas que ainda não foi implementado. Quando conhecem o diagnóstico, na maioria das vezes as mulheres reagem com surpresa porque não se consideram um grupo de risco por terem um companheiro estável e heterossexual. "Pensava que isso nunca aconteceria comigo", disse uma delas.

Segundo o informe, falta uma boa articulação entre as políticas para enfrentar a violência contra as mulheres e os temas de saúde, fato que dá lugar, reiteradamente, à violência institucional. Uma das entrevistadas na Argentina contou que quando seu ginecologista ficou sabendo que ela tinha o vírus causador da aids não quis mais atendê-la. "Falou que não atendia pessoas com HIV", disse. Outra, do Uruguai, que tinha consigo uma Bíblia, contou que quando a médica a informou sobre o diagnóstico também disse: "Lê muito a Bíblia, mas não é nenhuma santa". Por isso decidiu abandonar o tratamento.

Diante desta realidade, as pesquisadoras fazem 20 recomendações. Entre elas, promover políticas públicas integrais que articulem a prevenção e a atenção das duas pandemias a partir de uma perspectiva de gênero.

Fonte: Marcela Valente, da IPS - Envolverde