terça-feira, 16 de novembro de 2010

Espaços humanitários entre a Segurança Pública e a Legalidade

Frequentemente ouvimos falar sobre situações de violência armada, desigualdade social e carência de serviços públicos em inúmeras cidades do Brasil, entre elas uma merece destaque, principalmente pelos mais altos níveis de violência, comparados com outras regiões: Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do país.  Com suas praias estampadas em cartões postais, esconde uma mistura de riqueza e pobreza, abundância, e ao mesmo tempo, miséria.

Nesse contexto a população exige dos Estados e de suas Instituições e funcionários aprimoramento referente a serviços públicos, segurança, saúde, educação entre outros.
Com o aumento de bairros periféricos, adensados, conhecidos como favelas, o controle sobre ações que favoreçam os moradores é ainda mais escasso. Nas Organizações Não Governamentais (ONGs) e institutos surgem respostas para solucionar ou minimizar os problemas de tais comunidades.

O Comitê Internacional da Cruz vermelha (CICV) desenvolve atividades de assistência aos moradores de regiões consideradas zonas de vulnerabilidade social, com o intuito de reduzir as conseqüências humanitárias e promover o diálogo sobre princípios humanos e respeito à dignidade.

O CICV é uma organização humanitária neutra, imparcial e independente, que tem o compromisso de proteger a vida e a dignidade das vítimas de conflitos armados e de outras situações de violência. O trabalho desenvolvido pelo Comitê no Rio de Janeiro tem a parceria da Cruz Vermelha Brasileira - Filial do Estado do Rio de Janeiro (CVB/FERJ) e da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC), que juntos promovem ações voltadas para a saúde e de primeiros socorros comunitários. Segundo informações do CICV, o objetivo é prestar assistência em saúde mental às pessoas afetadas pela violência, a fim de aliviar seu sofrimento emocional. A cooperação técnica com equipes, como o Programa Saúde da Família (PSF) busca integrar os atendimentos de saúde mental aos recursos comunitários, promovendo ações de apoio mútuo e aumentando a integração das pessoas afetadas na comunidade.

O jurista argentino Gabriel Valladares, assessor jurídico do CICV, afirma: "Para termos um mundo civilizado, todo ser humano é regido por um conjunto de regras. É preciso ter também regras de conduta nos conflitos. Para isso, o Direito Internacional Público irá reger um país". Dentro dessa legislação temos o Direito Internacional Humanitário (DIH) e o Direito Internacional dos Direitos humanos (DDHH).


Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos

 Enquanto os DDHH são aplicados em todo tempo e lugar, os DIH só podem ser exercidos em situações de Conflito Armado.  Ambos se baseiam no Direito à Vida, na proibição de tortura, de tratos cruéis, humilhantes e degradantes, discriminação em razão de raça, cor, sexo e religião. O DIH só poderá ser aplicado em guerra declarada, conflito entre forças armadas, ocupação total ou parcial do território de um Estado.  O DIH não se aplica em situações de tensão ou distúrbios interiores.
No trabalho realizado no Rio de Janeiro, o jurista disse que é preciso dar assistência à população que está com dificuldades, capacitar os moradores em primeiros socorros e divulgar conhecimentos básicos. "Nas favelas que foram classificadas como as mais perigosas, não temos problemas com as milícias ou com o governo, pois o Estado é o único que autoriza o trabalho do CICV. A primeira preocupação do Comitê é sempre humanitária e jamais jurídica. Dessa forma, colocamos a vítima em primeiro lugar e compreendemos sua realidade."

Espaços humanitários foram abertos nas favelas do Complexo do Alemão, Complexo da Maré, de Vigário Geral e de Parada de Lucas. Nessas comunidades, com o apoio dos socorristas da filial do RJ, dezenas de moradores foram inseridos nas técnicas de primeiros socorros, ao longo de vários sábados. Com esse projeto, a organização espera que os alunos tenham condições de atender os feridos por situações de violência ou acidentes domésticas, além de disseminar os conhecimentos de saúde entre seus vizinhos. "Queremos que essas pessoas saibam salvar vidas, sem distinção de nenhum tipo", diz o representante do CICV para os países do Cone Sul e Brasil, o suíço Michel Minnig.

Armas de fogo

Segundo dados da ONG Viva Rio, divulgados em março de 2004 sobre a farta disponibilidade de armas de fogo no nosso país, de um total de oito milhões de armas que existem no Brasil, três milhões são ilegais. O número é relevante, já que 70% dos homicídios registrados nacionalmente acontecem com uso de armas ilegais. A cada doze minutos morre uma vítima de arma de fogo. É importante esclarecer que cerca de 65% dos assassinatos por armas de fogo no Brasil são cometidos por cidadãos sem antecedentes criminais e 70% ocorrem por motivos fúteis.
Pode-se considerar um erro acreditar que a proibição do comércio de armas resolverá o problema. No Plebiscito realizado em 2005, o qual previa a proibição do comércio de armas, a população decidiu que não queria o desarmamento. O Estatuto do Desarmamento prevê que o porte ilegal seja tratado como crime inafiançável e a pena poderá chegar a 12 anos de reclusão.
Muitos são os conflitos entre policiais e traficantes e, nesse meio, muitos inocentes pagam com a vida pelo uso abusivo das armas e de balas perdidas. Para o coronel André Vianna, da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, o trabalho da polícia é a manutenção da ordem pública, a prestação de auxílio. No código de conduta da Organização das Nações Unidas (ONU), o profissional deve respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os Direitos Humanos de todas as pessoas. Todos os policiais devem portar no bolso esquerdo uma carteirinha com o código de conduta. Isso é obrigatório.

Os códigos de conduta e o uso da Força

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o uso intencional da força física ou do poder real em ameaça contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade tem grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (OMS, 2002).
Muitas são as denúncias contra policiais, pois, aparentemente, o uso da força não tem limites nas regiões mais pobres. Para Willian, morador de uma favela da zona sul, chamada favela do arrebento, a polícia é abusiva: "Na maioria das vezes acontecem conflitos dentro da comunidade, eles chegam para resolver a situação e não veem quem é bandido ou não, chegam batendo em todo mundo, até em quem nada tem a ver com a história."

De acordo com dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, a polícia matou 1.137 pessoas em confrontos em 2008, nos chamados "autos de resistência". De janeiro a setembro do ano de 2009, os mortos pela polícia chegaram a 805, mantendo uma média de três por dia. Dados do ISP indicam que, nos últimos 10 anos, foram mais de 10 mil mortes cometidas pela polícia durante a chamada "política de enfrentamento".

Não basta fazer bem as coisas, o fundamental é fazê-las da forma correta.  O código de conduta para policiais diz o seguinte: "A forma como os funcionários efetuam o seu trabalho é tão importante como o trabalho em si. É fundamental que sua conduta seja íntegra e em conformidade com as leis e os regulamentos que regem as suas atividades. Notadamente, no que concerne a atividade da Polícia, esta questão deve ser tratada com especial distinção, pois seus Funcionários Encarregados de Aplicar a Lei (FEAL) possuem, com exclusividade, as faculdades profissionais para privar uma pessoa de liberdade ou, até mesmo, usar a força e arma de fogo contra um cidadão, somente para parar uma ação que compromete a vida de uma terceira pessoa."

Unidades de Polícia Pacificadora

Outra forma encontrada para amenizar a situação de violência nas favelas foi a criação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), no Estado do Rio de Janeiro. A ideia é aproximar a população da polícia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva elogiou o trabalho das UPPs: "A polícia não é para vir de quando em quando dar uns tiros e voltar. A polícia tem que vir e aprender a viver com a comunidade. O que o governo do Rio de Janeiro está fazendo é mostrar que é possível fazer com que a polícia conviva com a comunidade, que seja tratada como se fosse da comunidade e que trate a comunidade com respeito e dignidade".

O Cel. André Vianna disse também, que as UPPs são uma filosofia e que estão fazendo o papel do Estado, que está ausente. Quando questionado sobre como é feita a seleção para recrutamento dos policiais, o coronel disse que os recrutadores procuram pessoas que tenham valores próximos aos da polícia, que possam e estejam dispostos a aplicar os Direitos Humanos no dia a dia.
Em visita ao Brasil, em 2009, a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, a sul-africana Navenethem Pillay, visitou o Morro Dona Marta, em Botafogo, na zona Sul do Rio de Janeiro. A representante da ONU foi a uma UPP, acompanhada pelo secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame e considerou que essas medidas estão tendo efeito. "Nessa favela, nós não encontramos os níveis inaceitáveis de violência e mortes que acontecem em outras favelas", disse Nabenethem aos moradores.

Alguns cidadãos como D. Eva, moradora de uma comunidade carente em São Paulo, dizem que essa iniciativa não resolve todos os problemas, mas já é uma forma de amenizar os altos níveis de violência dos bairros. Infelizmente, as UPPs só são instaladas em locais em que a comunidade tenha uma base, uma estrutura.
Ao ser questionado sobre o chamado "bico", o cel. Vianna diz que, em outros países, isso é normal, como na Argentina e em Estados dos EUA, como a Flórida. "Fora do turno isso é normal. O valor pago pelo trabalho, nesses países, é dividido da seguinte forma: 70% fica para o policial e 30% vai para a manutenção da polícia". No Brasil, o "bico" está ligado à falta de segurança reinante. Geralmente, o policial trabalha sozinho, 'sem armas' (legais), sem rádio. Trabalha em dois turnos, o que ocasiona desatenção e falta de controle, por não ter um horário mínimo definido para descanso. Ele até brincou: "Ninguém está satisfeito com o que tem. Essa é a verdade". E afirmou que, no Rio de Janeiro, não existe uma guerra, e que também não é necessário criar um Ministério de Segurança, pois a segurança é dever de todo o Estado, assim como não é necessário criar uma polícia cidadã, pois "toda polícia é de proteção do cidadão."

Sobre o CICV

Fundado em 1863, o CICV deu origem às Convenções de Genebra e ao Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente vermelho. A organização dirige e coordena as atividades internacionais que o movimento conduz nos conflitos armados e em outras situações de violência.

Fonte: Valesca Montenegro